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terça-feira, 27 de março de 2007

"o valor das coisas não está no tempo que elas duram, mas na intensidade com que acontecem. por isso, existem momentos inesquecíveis, coisas inexplicáveis e pessoas incomparáveis…"
fernando sabino



boa viagem, vai dando notícias. telefono mal possa, mas tens os contactos todos, qualquer coisa ligas, está bem? fica sossegado, não vou precisar ligar-te.
a viagem era de trabalho mas o coração ia um pouco apertado. era a primeira vez que voltava depois de um período de quase cinco anos como residente, e de uns dez ou mais como ausente. foi uma opção, não regressar. a europa pareceu-lhe bem e ficou.
orlando era o destino, uma feira. conhecia bem os estados unidos, orlando não era novidade, mas a feira sim.
gil beijou marta e lá foi com a antecedência obrigatória ao embarque. deixaram de se ver e marta regressou ao seu trabalho. as feiras eram sempre assim, eram trabalho. gil gostava de ter ido com ela mas era longe, o período era superior ao habitual e havia trabalho de sobra por cá.
quando se quer que o tempo passe depressa ele teima em vagar, aqueles dias custaram a terminar.
no regresso, progressos do trabalho estavam estampados no seu rosto... revistas, contactos, novas ideias, máquinas... um país de coisas em grande, de fartura, de apostas...
gil parecia entusiasmado com a viagem, gostaria de voltar, iria voltar...
foi qualquer coisa que disse, qualquer atitude que teve ou que não teve na hora certa, uma aflição que o invadia, que levantaram a suspeita.
gil tinha algo entalado, estava bloqueado...
marta conhecia-o tão bem... que foi? que tens? as suas faces ruborizaram levemente, o suficiente para dar muito nas vistas na sua tez branca... quero contar-te uma coisa, nem sei como o hei-de fazer, não sei se vais entender...
marta idealizou imediatamente o filme, não conseguia acreditar e não acreditou. esperou para ouvir...
gil foi directo, sem rodeios, a sua atrapalhação era visívil - tive que dormir com uma sujeita no mesmo quarto!
tiveste? sabia que haveria uma justificação por incrível que fosse parecer-lhe, mas não gostou da ideia...
quando cheguei ao hotel só havia um quarto e estava uma sueca a discutir na recepção. ela tinha reserva e não lhe arranjavam solução, ali ou noutro hotel. eram orientais e arranhavam mal o inglês. não se faziam compreender nem compreendiam. não era tarde mas estavamos ambos cansados e ambos tinhamos pré-pago o quarto por aquela noite.
se quiserem podem ficar no mesmo quarto! disse a recepcionista no seu inglês achinesado. devolveremos a diferença.
fiquei sem saber que fazer, pensei logo em ti...
a sueca ficou toda contente pois não queria sair para procurar hotel... perguntou se eu não me importava, de uma forma tão natural que achei que não haveria mal algum...
depois imaginei-te a ti numa situação idêntica e vacilei...
estava de passagem para outra cidade, esperava um grupo de brasileiros com quem ia fazer uma expedição. eles só chegariam no voo da manhã seguinte portanto optou por pernoitar, em vez de passar a noite toda no aeroporto e tinha reservado quarto. estava a fazer o mestrado e a expedição fazia parte do seu projecto.
acedi mas pensei que te fosses zangar - como vou explicar isto à marta?
não era tarde, fomos jantar ali perto enquanto a chinesa preparava o quarto.
era nova, muito alta, simpática, tipo cientista! parecia assustada mas, ao mesmo tempo, a ideia de ir embora parecia assustá-la mais. disse-me que gostou do meu aspecto e que tinha compreendido que estava a lidar com um homem correcto, que não julgasse que aceitaria dormir no mesmo quarto de um homem qualquer.
achei que realmente ela tinha tido sorte, os transeuntes não eram muito católicos.
teria que se levantar muito cedo, prometeu não fazer barulho.
foi para o quarto primeiro e nem lhe vi mais a cara.
já sabes que durmo como uma pedra, nem a senti sair. quando acordei já não estava, deixou um bilhete a agradecer.
sabes que não aconteceu nada, não sabes?
sei, claro que sei!
não ficaste zangada? eu tinha que te contar... percebes?
claro que tinhas...
era gira?
não era feia, era muito alta e grande, assim um pouco... não te sei explicar... bom! era um pouco desengonçada, mas era simpática... acho que me deu um cartão duma universidade sueca, deve estar para aí!
que alívio sentiu o gil, contou a história.
que alívio sentiu a marta, não houve nenhuma outra história. aquela era a verídica. por muito estranha que pudesse parecer, só havia aquela.



(trecho de "história de vidas")


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